O Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina é dos pioneiros da área no Brasil. Criado o curso de mestrado em 1975, tornou-se referência regional na década seguinte. Em suas duas primeiras décadas de funcionamento, o PPGH da UFSC foi um programa voltado para a história regional, marcado tanto pelos estudos de história política, quanto por trabalhos de demografia e história econômica e social. Na medida em que se consolidava como programa de pós-graduação, e fortalecido pela expansão e qualificação do seu corpo docente, o PPGH viveu no início dos anos 1990 um primeiro momento de reorganização das suas fronteiras temáticas e teóricas, ao mesmo tempo em que atraía um corpo discente que tinha interesses que rapidamente extrapolavam o enquadramento regional que havia marcado as origens do programa. A abertura do seu programa de Doutorado, em 1998, consolidou essa nova configuração, adotando como área de concentração a “História Cultural’ de modo a abarcar a diversidade das novas pesquisas produzidas no programa, como os estudos sobre gênero e sexualidade, relações de poder e formação de identidades, histórias da cultura e das representações: temas que se tornaram a face mais visível da sua identidade acadêmica. Ao assumir sua nova área de concentração, o programa decidia abraçar o diálogo teórico e metodológico que marcava o debate histórico brasileiro e internacional naqueles anos, e que se refletia nas pesquisas e trajetórias intelectuais do seu corpo docente. Ao longo das duas décadas que se seguiram, nosso programa de pós-graduação consolidou-se de modo significativo, assumindo um papel importante na formação de professores(as) e pesquisadores(as). Em mais de quatro décadas de funcionamento, o PPGH da UFSC titulou mais de 450 mestres e 130 doutores, que em sua maior parte se integraram a várias instituições universitárias do país e do exterior.
Com seu desenvolvimento, e sobretudo na última década, com a expansão, renovação e ainda maior diversificação do seu corpo docente, bem como a intensificação dos seus intercâmbios internacionais, o PPGH da UFSC ampliou consideravelmente suas áreas de pesquisa e formação.
O programa comporta hoje grupos de pesquisa com importância expressiva e liderança reconhecida em áreas diversas, como: estudos de gênero e religiosidade no Brasil e América Latina, história ambiental, história do trabalho, da imigração e dos movimentos sociais, história indígena e da escravidão africana e do pós-abolição, histórias da política, da arte e da cultura e, mais recentemente, novas discussões sobre memória e historiografia. Esse processo de expansão foi marcado por uma crescente diversificação das pesquisas produzidas no programa, que ficaram cada vez menos marcadas pela história regional, ou pelo interesse exclusivo na história do Brasil. As pesquisas produzidas pelo PPGH passaram a incorporar estudos de escopo espacial e temporal vasto e diversificado, que vão desde os estudos sobre a história indígena e pré-colonial latino-americana (com pesquisas sobre arqueologia e cultura material, por exemplo), passando pelas histórias da Antiguidade e da Idade Média ocidental e não-ocidental, até investigações sobre as conexões atlânticas modernas e contemporâneas (Brasil, África, Europa e Caribe), entre vários outros temas. Histórias comparadas e conectadas, bem como um interesse crescente sobre as relações entre o local e o global, ecoam em várias das pesquisas que vêm sendo desenvolvidas por professores e alunos do PPGH.
Esse quadro de renovação e experimentação intelectual produziu a necessidade de repensar a área de concentração do Programa e refletir sobre o nexo geral que podia sintetizar de modo mais adequado essa sua nova fase. A convicção crescente de que a denominação de “História Cultural” não contemplava de modo adequado as escolhas teóricas e os temas de pesquisa de docentes e discentes, levou a mais recente mudança do título – e da orientação – da sua área de concentração, que passou a vigorar no ano de 2018.
A definição da “História Global” como a nova área de concentração foi fruto de intenso debate que contou com a participação decisiva dos professores mais jovens do PPGH, apoiados pelos seus colegas mais experientes, e responde diretamente ao engajamento individual e coletivo do programa com as discussões e contribuições mais recentes no campo da história, tanto no âmbito local quanto internacional.
Essa convergência em direção a uma perspectiva global foi também fruto da dinâmica interna de cada linha de pesquisa ao longo dos anos. Os caminhos foram múltiplos: se algumas das linhas chegaram à indagação sobre o global pelo caminho da história social, outras partiram dos estudos subalternos ou dos estudos de gênero, como exemplificado pela trajetória da linha “Histórias Entrecruzadas de Subjetividades, Gênero e Poder”. Outras ainda trilharam esse caminho partindo da história ambiental ou dos estudos pós-coloniais e das imigrações, como é o caso da linha “Migrações, Espacialidades e Globalidades”. Em alguns casos, o estudo comparativo e conectado de processos sócio-políticas transnacionais abriu caminho para pensar a pertinência do “global” como categoria interpretativa, ou como uma problemática geral a partir da qual pensar novos caminhos de pesquisa. Esse foi certamente o caso nos estudos sobre as ditaduras militares na América Latina na segunda metade do século XX, as pesquisas sobre as conexões transnacionais e artísticas no mundo intelectual no continente americano (estudadas, por exemplo, por membros da linha “História da Historiografia, Arte, Memória e Patrimônio”), ou o campo das relações institucionais, culturais e políticas entre o Brasil e outras nações (que fazem parte dos temas de interesse da linha “Sociedade, Política e Cultura no Mundo Contemporâneo”). O mesmo pode ser dito da reflexão sobre as dimensões conectadas que marcaram a abolição da escravidão, e as transformações do mundo do trabalho no atlântico e além, discutidos na linha de pesquisa “História Global do Trabalho”. Exemplos de outros trajetos análogos poderiam ser acrescentados à lista.
É importante notar que a adoção da nova área de concentração se dá dentro de um horizonte de pluralidade de perspectivas que é marcadamente avesso a qualquer alinhamento com ortodoxias historiográficas. Esse saudável ecletismo intelectual se combina com a valorização da experimentação temática e metodológica, que é um valor cultivado desde muito tempo pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFSC. Essas são, aliás, características que apenas se tornaram mais definidas e auto-conscientes ao longo dos anos, e formam hoje uma das suas marcas mais reconhecíveis.
É nesse duplo espírito de experimentação e anti-dogmatismo que a adoção da “História Global” pelo PPGH adquiriu substância e sentido. O debate em torno desse tema, que vai ganhando cada vez mais força e conteúdo, vem sendo marcado pela ampliação da agenda da pesquisa histórica de modo a incluir discussões metodológicas sobre a variação da escala de análise (e as relações entre o micro e o macro), bem como o interesse temático sobre os processos de integração (formação do capitalismo, dinâmicas históricas da globalização e mundialização em diversos contextos históricos), sobre as conexões transregionais e transnacionais, e a história comparativa e conectada. Além disso, é importante destacar que uma das matrizes de discussão à qual a nova área de História Global deve muito, deriva dos debates propostos pelos chamados estudos pós-coloniais. Estes estudos invocaram, entre outras coisas, os conceitos de pós-colonialidade e, mais recentemente, decolonialidade. O debate sobre esses conceitos articula-se com a discussão mais geral sobre os limites que as categorias de análise, modelos interpretativos e as narrativas históricas produzidas no contexto intelectual norte-Atlântico encontram ao serem transladadas para os países da “periferia” do globo, definindo aquilo que pode ser chamado “Sul Global”. As noções de modernidade, progresso e universalidade que muitas vezes marcam esses modelos interpretativos, são criticadas e desafiadas por perspectivas de análise e epistemologias que pretendem “provincializar” a Europa e o norte-atlântico, e ao mesmo tempo revelar a originalidade e a capacidade interpretativa de conceitos e debates oriundos do “Sul” – das Américas central e do sul, da Ásia, África e Oceania, e dos países que viveram o outro lado da história das colonizações, e das descolonizações. Essas são também – e certamente – discussões que ecoam no novo programa de pesquisas que o PPGH da UFSC pretende abraçar.
Todos esses temas aparecem e ganham corpo nas pesquisas da maior parte do quadro docente permanente, e já começa a se refletir também nas dissertações e teses orientadas no programa.
A escolha da “História Global” como a nova área de concentração do programa é, portanto, uma opção pela ampliação dos horizontes teóricos e temáticos da pesquisa histórica. Por isso, não significa a adoção de um conceito único, um recorte temporal ou espacial pré-definido, ou mesmo uma metodologia unitária. Ao contrário – e de modo coerente com o debate sobre a História Global – o que se enfatiza aqui é o caráter experimental e heurístico da ideia do “global”. Esse caráter é marcado por uma interrogação metodológica constante sobre os limites e contornos dos contextos, temas e problemas da pesquisa histórica, bem como a desconfiança com relação à pertinência das fronteiras espaciais e temporais tradicionais utilizadas pelo(as) historiadores(as). A “História Global” funciona, portanto, como um conceito agregador, que não assume necessariamente unidades de análise ou escalas de observação pré-definida, nem uma hierarquia fixa de mediações: estudos de micro-história podem, por exemplo, ser pensados como “histórias globais”, na medida em que exploram as respostas necessariamente locais a perguntas historiográficas que podem, e devem, ter alcance e consequências em uma escala muito maior.
A adoção da nova área de concentração em “História Global” – iniciada em 2018 – vem comportando a adoção de uma série de atualizações curriculares, bem como o esforço de sintonizar as orientações em andamento e futuras aos novos parâmetros do programa.